Independentemente de filiação socioafetiva
RESUMO: O presente artigo busca analisar a viabilidade jurídica da imputação ao padrasto ou madrasta de obrigação alimentar para com o enteado, mediante uma análise dos parâmetros e balizas do Direito de Família contemporâneo e os posicionamentos doutrinários mais marcantes sobre a temática, além dos dispositivos legais relacionados, para, ao final, expor o entendimento pessoal do autor no sentido da possibilidade do pedido de alimentos direcionado ao padrasto/madrasta, de forma complementar e subsidiária aos obrigados principais (os pais), em suma, pela aplicação do Princípio da Solidariedade Familiar no âmbito do parentesco por afinidade que se estabelece entre o cônjuge/companheiro e os filhos de seu consorte.
1 INTRODUÇÃO
O Princípio da Solidariedade, positivado em nosso ordenamento jurídico no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, possui larga aplicabilidade no âmbito do Direito de Família, norteando as relações jurídico-familiares e as obrigações entre parentes e mesmo cônjuges, e alicerçando diversas outras disposições legais e até mesmo constitucionais, como é o caso da norma prevista no art. 227 da Carta Política, no sentido de que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Ao mesmo tempo em que se coloca como pilar de nossa república federativa, genericamente, sendo um de seus objetivos fundamentais (conforme previsão expressa do art. 3º, inciso I, da Constituição), o Princípio da Solidariedade aplica-se com especial ênfase às relações familiares, juntamente com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (este último, consagrado, notadamente, nos arts. 1º, inciso III, e 3º, inciso IV, da Magna Carta), e não só no que diz com o dever da família de zelar pelo bem-estar e melhor interesse de crianças e adolescentes, como também no que se refere às relações entre cônjuges, irmãos, tios e sobrinhos, e assim por diante.
Segundo o Princípio da Solidariedade Familiar, em síntese, há entre parentes – e entre cônjuges, a teor do art. 1.566, inciso III, do Código Civil Brasileiro – o dever de auxílio recíproco, em caso de necessidade.
Infraconstitucionalmente, o art. 1.694 do Código Civil vigente prevê que “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”.
Assim, plenamente inserido está, no sistema jurídico pátrio, o Princípio da Solidariedade Familiar, que nada mais é do que uma especificação, um aprofundamento do Princípio da Solidariedade (genérico) previsto no art. 3º, I, da Constituição Federal, estabelecendo o dever de cuidado recíproco especificamente entre membros de uma mesma família.
Segundo Paulo Lôbo (2013),
A solidariedade familiar é fato e direito; realidade e norma. No plano fático, as pessoas convivem, no ambiente familiar, não por submissão a um poder incontrariável, mas porque compartilham afetos e responsabilidades. No plano jurídico, os deveres de cada um para com os outros impuseram a definição de novos direitos e deveres jurídicos, inclusive na legislação infra-constitucional. O Código Civil de 2002 avançou nessa direção, mas está muito aquém das demandas da contemporaneidade, impondo pugnar-se por avanços legislativos, preferencialmente em um corpo legal orgânico e sistemático, como a proposta de um Estatuto das Famílias autônomo, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família.
E prossegue, o doutrinador:
A solidariedade do núcleo familiar compreende a solidariedade recíproca dos cônjuges e companheiros ou conviventes, principalmente quanto à assistência moral e material. O lar é por excelência um lugar de colaboração, de cooperação, de assistência, de cuidado; em uma palavra, de solidariedade. O casamento, por exemplo, transformou-se de instituição autoritária e rígida em pacto solidário. A solidariedade em relação aos filhos responde à exigência da pessoa de ser cuidada até atingir a idade adulta, isto é, de ser mantida, instruída e educada para sua plena formação social. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e o nosso ECA ressaltam a solidariedade entre os princípios a serem observados.
(Grifamos)
Rodrigo da Cunha Pereira (2016, p. 229) ensina que o Princípio da Solidariedade “advém do dever civil de cuidado ao outro”, resultando de uma superação do individualismo de outrora, quando a preocupação prioritária da sociedade e do ordenamento jurídico era proteger os interesses patrimoniais e individuais.
Ainda sobre o Princípio da Solidariedade Familiar, Maria Berenice Dias (2009, p. 66) faz apontamento interessante, que merece reflexão (2009, p. 66):
Uma das técnicas originárias de proteção social que até hoje se mantém é a família. Aproveita-se a lei da solidariedade no âmbito das relações familiares. Ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-se o Estado do encargo de prover toda a gama de direitos que são assegurados constitucional mente ao cidadão. Basta atentar que, em se tratando de crianças e de adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois à sociedade e finalmente ao Estado (CF227) o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos cidadãos em formação. A mesma ordem é repetida na proteção ao idoso.
Paralelamente a esta premissa inicial, enfim, ao que importa ao presente estudo, tem-se uma segunda, qual seja o estabelecimento do parentesco dito “por afinidade” com os parentes do cônjuge/companheiro, surgindo daí os vínculos de sogro(a) com genro/nora, cunhados, etc.
Outra vinculação de parentesco jurídico-formal que nasce desta relação é aquele que se dá faticamente entre padrasto/madrasta e enteado(a). É dizer: surge da união de duas pessoas um parentesco – por afinidade – entre uma delas e o(s) filho(s) da outra.
Mesmo que tal vinculação não tome contornos de paternidade socioafetiva (e, como regra, não tomará), o nascimento de uma relação de parentesco, de acordo com a própria legislação vigente[2], é inarredável.
Sobre o parentesco por afinidade, Conrado Paulino da Rosa (2019, p. 328) leciona que “é o vínculo criado pelo casamento ou pela união estável, que une cada um dos cônjuges ou companheiros aos parentes do outro” e, ainda, que tal vinculação se limita, “em linha reta, aos ascendentes da esposa(o) ou companheira(o), ou seja, sogro e sogra e, também, em relação a eventuais descendentes de um dos parceiros, quais sejam, os enteados” (destacamos).
Da intersecção dessas duas premissas – solidariedade familiar e parentesco por afinidade – e sua aplicabilidade ao padrastio, nasce o objeto de estudo do presente artigo: a imputabilidade – ou não – de obrigação alimentar ao padrasto ou à madrasta.
2 A NOVA COMPREENSÃO DE FAMÍLIA E A PREVALÊNCIA DA AFETIVIDADE SOBRE O CASAMENTO E A CONSANGUINIDADE
Com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, a compreensão de família pelo direito sofreu drástica e salutar mutação, passando essa a ser entendida como um grupo de pessoas unido por laços de afetividade – e não mais como decorrência obrigatória do matrimônio e/ou de elo sanguíneo, como outrora –, em busca da felicidade e realização pessoal/existencial.
A partir disso, novos modelos de família começaram a ser “aceitos” não só pela sociedade, como também pela doutrina jurídica e jurisprudência, em que pese à existência, ainda hoje, de alguma resistência social, fruto de preconceitos e dogmas retrógrados, com relação a alguns modelos – como se alguns se sentissem no direito de julgar e condenar as escolhas e a busca pela felicidade alheias, mesmo que essas não interfiram minimamente na sua vida pessoal e bem-estar.
Fato é que a nova família, instituída pela evolução dos tempos e pela superação de antigos conceitos pré-concebidos, não mais contempla limitações no que concerne à sua formatação, bastando, para que produza efeitos jurídicos, a convivência justificada e sustentada pela afetividade.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2019, p. 53), destacam que “a entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade”, salientando que, atualmente, no Direito Brasileiro, o afeto é “a base fundante das relações familiares, servindo como elemento propulsor de toda e qualquer interpretação, integração (complementação) e aplicação das suas normas”.
Nesse diapasão, vale lembrar que a própria Constituição Federal consagrou em seu texto, lá nos idos já remotos de 1988, uma nova concepção de família, ampliada, reconhecendo como tal, além da família decorrente do matrimônio, a união estável, e contemplando formalmente no ordenamento as famílias monoparentais (compostas apenas de um pai e seus filhos ou uma mãe e seus filhos)[3]. Além disso, a Magna Carta consagrou a igualdade entre os filhos, oriundos ou não do matrimônio, garantindo-lhes os mesmos direitos (art. 227, §6º), dentre outros avanços.
Deixou o casamento, portanto, de figurar como ponto de partida obrigatório para a formação da entidade familiar, dando lugar, pura e simplesmente, ao afeto e à vontade das partes, priorizando-se, assim, como hodiernamente é ponto pacífico, a dignidade da pessoa humana. Neste contexto, que acabou se entrelaçando com os novos padrões sociais, o padrasto e a madrasta passaram a ocupar papel de extrema relevância e presença muito significativa na família contemporânea.
Não são raras, hoje em dia, por exemplo, as chamadas famílias recompostas ou reconstituídas, ou, ainda, famílias “mosaico”, nas quais um pai/mãe com seus filhos de relacionamento anterior se une a outra pessoa também com filhos ou não, formando, assim, uma nova unidade familiar.
As professoras argentinas Cecília Grosman e Irene Martinez Alcorta (2000, p. 63) apontam características especiais das famílias que denominam ensambladas:
a) es una estructura compleja formada por uma multiplicadad de vínculos; b) existe ambigüedad em los roles; c) la interdependencia, que es principio básico de cualquier organización, requiere concretarse em este caso con los subsistemas familiares precedentes y, por consiguiente, es necesario articular los derechos de los integrantes del nuevo núcleo con los derechos de quienen componen aquellos subsistemas.
E enfatizam, ainda, que
La interdependencia exige articular los roles y los derechos y deberes de los padres y madres afines (padrastros/ madrastras) con relación al hijo afín (hijastro) con los derechos y deberes de los progenitores. Igualmente, deben armonizarse algunos derechos del cónyuge actual y el ex cónyuge, fundamentalmente respecto de la obligación alimentaria y la seguridad social. (GROSMAN; MARTÍNEZ ALCORTA, 2000, p. 69).
Sobre as famílias “mosaico”, retornando-se à doutrina brasileira, nunca é demais citar os ensinamentos de Rolf Madaleno (2019, p. 7), atento às permanentes mutações sociais:
Com a disseminação dos divórcios e até mesmo das dissoluções das inúmeras uniões estáveis vão surgindo as figuras dos padrastos e das madrastas, dos enteados e das enteadas, e que ocupam os papéis domésticos dos pais e mães, dos filhos e das filhas e dos meio-irmãos que são afastados de uma convivência familiar e que passam a integrar uma nova relação familiar proveniente dos vínculos que se formam entre um dos membros do casal e os filhos do outro.
Nesses núcleos familiares, em que há a figura do padrasto ou da madrasta, não é raro que esses desempenhem a função de provedores do lar, ainda que em comunhão de esforços com seu consorte – sendo, este último, o pai ou a mãe das crianças ou adolescentes que se tornaram enteados do(a) primeiro(a).
Nesses casos, não há dúvidas acerca da contribuição do padrasto/madrasta para a mantença da entidade familiar e, por conseguinte, das necessidades básicas de seus enteados, produzindo dependência financeira em alguma medida e fazendo surgir o seguinte questionamento: poder-se-ia impor obrigação alimentar ao padrasto ou à madrasta sem o reconhecimento de paternidade socioafetiva, ou seja, mantendo-se hígida sua condição de “mero” padrasto/madrasta?
3 A FIGURA DO PADRASTO E DA MADRASTA E A VIABILIDADE JURÍDICA DE LHES SER IMPUTADA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
A despeito da solidez do vínculo afetivo que acaba se formando, de regra, entre padrasto/madrasta e enteado(a), esta relação não acarretará automaticamente uma paternidade socioafetiva, sendo possível a mantença das características bem definidas da condição de “mero” cônjuge/ companheiro(a) do(a) pai/mãe, e não propriamente de uma mãe ou um pai socioafetivos, até mesmo, no mais das vezes, pela existência desses e desempenho completo dos seus direitos e deveres decorrentes do poder familiar – ou, como prefere Conrado Paulino da Rosa, em definição terminológica com a qual concordamos, da “função parental” (2019, p. 415).
O questionamento que se coloca, nesse cenário, diz com a existência de solidariedade familiar entre padrasto/madrasta e enteado(a) sem a descaracterização destas condições e destes papeis bem definidos na dinâmica da família – ou seja, sem cogitar do reconhecimento de filiação socioafetiva, pela ausência de vontade das partes neste sentido.
A jurisprudência majoritária vem se posicionando de modo a sequer cogitar essa análise, descartando de plano tal conjectura. Entendemos, contudo, que a questão traz consigo a necessidade de um exame mais aprofundado.
São comuns, hodiernamente, situações fáticas em que o padrasto ou a madrasta ficam encarregados, pelo ajuste travado no âmbito privado da unidade familiar, da mantença desta, ocupando o papel de provedor(a) do núcleo familiar, de modo que até mesmo seu(sua) cônjuge/companheiro(a) dele(a) depende financeiramente – e, por conseguinte, também o(a) enteado(a). Eventualmente, pode haver até mesmo cenários mais peculiares, em que o genitor encontra-se inapto ao trabalho ou algo que o valha. Suponhamos, ainda, que, neste mesmo caso hipotético, o genitor, incapacitado ao trabalho, não possua familiares outros para “exigir” o cumprimento prático da solidariedade familiar (pedir alimentos).
Para este, na condição de cônjuge/companheiro, sobrevindo a extinção do relacionamento conjugal, a lei autoriza expressamente o exercício de pretensão alimentar em face do ex-consorte (art. 1.694 do Código Civil). Contudo, além desse cônjuge/convivente que figurava como dependente financeiramente do outro, veem-se desamparados, neste novo contexto, também os seus filhos, que estabeleceram parentesco por afinidade com o(a) padrasto/madrasta, nos termos do art. 1.595 do Código Civil, e, mais do que isso, um parentesco que não se extingue, mesmo com a dissolução do casamento ou união estável, a teor do § 2º do dispositivo legal supracitado[4].
Evidentemente que, nesse cenário, seria possível ao incapaz reivindicar alimentos de seu outro genitor, o qual não integrava a entidade familiar em questão. Mas cogitemos da ausência deste ou de não ser conhecido. Nessa situação, em tese, os próximos na linha obrigacional de sustento da criança ou adolescente seriam os avós (a quem, como definido pelo Superior Tribunal de Justiça, toca obrigação complementar e subsidiária à dos pais[5]) ou, na impossibilidade desses, como último recurso, a outro parente consanguíneo, pelo princípio da solidariedade familiar, como um tio ou tia, por exemplo – não mais em decorrência da função parental (“poder familiar”), tocante apenas aos pais.
O padrasto ou a madrasta, nesse quadro, desempenharia o papel de parente por afinidade, a quem, porém, em tese, revela-se inimputável a obrigação de prestar alimentos, não havendo na legislação brasileira em vigor nenhuma disposição acerca da sua autoridade ou, tampouco, de eventual obrigação alimentar sua para com o enteado, a quem viabilizou condições materiais talvez incompatíveis com a condição do genitor biológico. (MADALENO, 2019, p. 7)
Quando da vigência, por assim dizer, daquela unidade familiar agora em vias de desfazimento, dito padrasto ou dita madrasta ocupava papel de provedor(a) principal, por escolha sua própria – e um papel muito mais próximo e presente na vida do enteado do que, eventualmente, um tio consanguíneo distante, por exemplo.
Entendemos que, neste contexto, estar-se-ia frente a situação análoga à de uma adoção à brasileira (assunção e registro formal de criança como seu filho, mesmo sabendo não o ser), na qual não é dada ao adotante a possibilidade de arrependimento ulterior e anulação posterior do registro.
Aqui, tal qual lá, o padrasto/madrasta provedor(a), enquanto a unidade familiar permanecia íntegra – ou seja, antes do rompimento da relação conjugal ou união estável –, sabia não estar sustentando filhos seus, mas sim de seu consorte: pessoas que se tornaram suas parentes por afinidade. Tinha o pleno conhecimento de tal situação e optou por fazê-lo assim mesmo, em postura, aliás, louvável e de demonstração pura de afeto com seu consorte e com a prole deste (assim como se verifica na adoção à brasileira).
O padrasto/madrasta, neste caso, desempenha função parental, como verdadeiro pai/mãe substituto(a) (ainda que sem filiação socioafetiva declarada formalmente), provendo a unidade familiar e nutrindo fortes laços afetivos com seus enteados, de modo a se sujeitar, como decorrência disso, a nosso sentir, a ter de atender a eventual postulação alimentar. Trata-se, a nosso ver, de ato-fato jurídico, ao qual o direito deve se adequar.
A propósito disso, cumpre registrar que Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2017, p. 377) definem o ato-fato jurídico como aquele “fato jurídico qualificado pela atuação humana”. Segundo os doutrinadores civilistas “No ato-fato jurídico, o ato humano é realmente da substância desse fato jurídico, mas não importa para a norma se houve, ou não, intenção de praticá-lo”, de modo que o que se deve ressaltar é a consequência da ação humana, o fato dela resultante, sem se atribuir maior relevância ao elemento volitivo do sujeito praticante do ato que o desencadeou.
Por isso, no nosso entendimento, e no qual, aliás, não estamos sozinhos, embora ainda façamos, hoje, parte de uma minoria, é de que podem ser requeridos alimentos ao padrasto/madrasta – lembrando que, por serem parentes por afinidade, não há falar em “ex-padrasto” ou “ex-madrasta” – em caráter complementar e subsidiário aos obrigados principais, tal qual a condição avoenga, cabendo a escolha de para quem pedir, ao postulante.
Nessa esteira, vale citar entendimento já manifestado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, na apreciação de caso no qual a genitora postulou, em representação à filha incapaz (criança), alimentos de seu ex-companheiro, padrasto da menina:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL C/C ALIMENTOS. DECISÃO QUE FIXOU O DEVER ALIMENTAR À EX-COMPANHEIRA E À ENTEADA. DECISÃO EXTRA PETITA. TESE RECHAÇADA. LEGITIMIDADE ATIVA DA GENITORA PARA REQUERER ALIMENTOS EM PROL DA FILHA MENOR, AINDA QUE ESTA NÃO CONSTE COMO PARTE NO PROCESSO. MERA IRREGULARIDADE PROCESSUAL. NULIDADE AFASTADA. A legitimidade ativa da genitora em pleitear alimentos, enquanto guardiã da menor, advém do próprio exercício do poder familiar e do dever de sustento e educação à descendente. Assim, o deferimento de alimentos em favor de menor quando requeridos por sua mãe, ainda que não seja parte do processo, não retrata decisão extra petita, representando simples irregularidade processual. UNIÃO ESTÁVEL. CONFIGURAÇÃO DEMONSTRADA EM COGNIÇÃO SUMÁRIA. COABITAÇÃO, DEPENDÊNCIA FINANCEIRA E INTENÇÃO DE CONSTITUIR FAMÍLIA EVIDENCIADAS. EXEGESE DOS ARTS. 1.694 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. NECESSIDADE COMPROVADA. BINÔMIO NECESSIDADE X POSSIBILIDADE. Ainda que em sede de cognição sumária, comprovada a existência de união estável entre as partes, devem ser fixados alimentos provisórios em prol da ex-companheira quando cabalmente demonstrada a sua necessidade, principalmente até a sua completa reinserção no mercado de trabalho, para que possibilite sua subsistência. ALIMENTOS À ENTEADA. POSSIBILIDADE. VÍNCULO SOCIOAFETIVO DEMONSTRADO. PARENTESCO POR AFINIDADE. FORTE DEPENDÊNCIA FINANCEIRA OBSERVADA. QUANTUM ARBITRADO COMPATÍVEL COM AS NECESSIDADES E AS POSSIBILIDADES DAS PARTES. Comprovado o vínculo socioafetivo e a forte dependência financeira entre padrasto e a menor, impõe-se a fixação de alimentos em prol do dever contido no art. 1.694 do Código Civil. Demonstrada a compatibilidade do montante arbitrado com a necessidade das Alimentadas e a possibilidade do Alimentante, em especial os sinais exteriores de riqueza em razão do elevado padrão de vida deste, não há que se falar em minoração da verba alimentar. DECISÃO MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2012.073740-3, de São José, rel. Des. João Batista Góes Ulysséa, j. 14-02-2013)
(Destacamos)
Na espécie, como visto, não se fala em dever de assistência decorrente do poder familiar tocante aos pais, senão que, isto sim, no princípio da solidariedade familiar, decorrente do parentesco por afinidade.
Contudo, no problema ora posto para análise, parece-nos que a obrigação seria ainda mais defensável do que aquela decorrente unicamente da solidariedade familiar (aplicável, a priori, somente a parentes consanguíneos): no caso, estar-se-ia tratando de parentesco por afinidade fortalecido pelo desempenho efetivo – na prática – de função parental, o que justificaria ainda mais a responsabilidade pelo sustento (mais do que a responsabilidade avoenga, por exemplo).
O status quo da vigência do – agora extinto – relacionamento entre o pai/mãe e padrasto/madrasta provedor(a) autorizaria, pois, a nosso sentir, o menor, não conscientemente, mas na condição de sujeito de direitos especialmente protegido pelo ordenamento jurídico pátrio, a nutrir justa expectativa de manutenção da sua subsistência por aquele(a) que a garantiu nos últimos anos.
Ao se ver desprovido da fonte de sustento que lhe viabilizou a sobrevivência até então – até a extinção do vínculo afetivo-conjugal de sua mãe/pai com “terceiro(a)”, seu padrasto/madrasta –, pode o infante (representado, evidentemente, por ainda não contar com capacidade civil) reivindicar alimentos desse, na ausência de condições dos genitores, obrigados principais.
No que respeita à posição dos avós nessa ordem de preferência obrigacional, entendemos que a do padrasto/madrasta seria de mesmo nível, antecedendo, porém, tal qual a obrigação avoenga, aos demais parentes. Caberia ao postulante dos alimentos a decisão de para quem os pedir, no nível dos avós e padrasto/madrasta, podendo, inclusive, acionar mais de um, consideradas suas possibilidades financeiras.
Entendimento em sentido diverso, ou seja, de que a obrigação avoenga viria antes da do(a) padrasto/madrasta, a nosso sentir, acabaria por alçar o vínculo biológico a nível de importância superior ao vínculo afetivo, o que não mais encontra qualquer guarida no Direito de Família moderno.
Nessa toada, vale destacar que além de o padrasto/madrasta ter assumido o papel de provedor na vida do(a) enteado(a), por livre e espontânea vontade, contraindo tacitamente obrigações (como ocorre em tantos outros contextos da vida, como é o caso das obrigações contraídas automaticamente por força de uma união estável não formalizada, ou da responsabilidade civil decorrente de danos gerados culposamente/involuntariamente a terceiros, etc.), o art. 227 da Constituição Federal imputa expressamente à família – além da sociedade e do Estado – o dever de “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (…)”.
Também por esse viés, não nos parece razoável eximir o padrasto/madrasta da manutenção das necessidades básicas do(s) menor(es) com quem estabeleceu vínculo de parentesco (por afinidade), integrando um mesmo núcleo familiar e construindo laços de afeto, na impossibilidade dos obrigados preferenciais, somente pela ausência de consanguinidade.
Certo é que, de regra, o padrasto/madrasta não pretende substituir o(a) pai/mãe do enteado ou mesmo consente com a constituição de vínculos paternais socioafetivos. Contudo, tais circunstâncias não podem servir como autorizativo para que se o(a) exima de determinados deveres, como o de assistência, decorrente da solidariedade familiar – afinal, parente do enteado, parece-nos indiscutível, ele(a) se tornou, e sem possibilidade de rompimento jurídico do vínculo – e ainda agravado pelo desempenho efetivo de função parental por relevante período.
Outrossim, ainda que se entenda que a obrigação alimentar do padrasto dependa da caracterização de relação paterno-filial entre si e o enteado, nascendo a figura da filiação socioafetiva, ainda assim, entendemos que tal “pré-requisito”, em se tratando de padrastio, não deva depender de prévia declaração/formalização, sendo viável a imputação direta do dever alimentar, a partir da mera constatação da parentalidade afetiva na própria ação de alimentos.
Nada obstante o posicionamento ora manifestado, entendemos ser imprescindível, como, aliás, não poderia deixar de ser, a acurada análise do quadro fático específico, devendo ser apurada (i) a capacidade do padrasto/madrasta em questão para a assistência alimentar do enteado, bem como, e paralelamente, (ii) a completa ausência dos pais ou de capacidade alimentar desses.
Por fim, cabe consignar a inquietação que acomete parte da doutrina com relação ao tema – como pudemos testemunhar, no ano de 2019, em palestra ministrada pelo Prof. José Fernando Simão, em Porto Alegre (no Congresso Gaúcho de Direito de Família, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, Subseção do Rio Grande do Sul – evento realizado entre os dias 22 e 23 de novembro na Sede da OAB “Cubo”, em Porto Alegre) –, pela possibilidade de, com o reconhecimento da viabilidade de imputação de obrigação alimentar ao padrasto ou à madrasta, estar-se incentivando um distanciamento afetivo entre padrastos e enteados, o estabelecimento de um elo de afeto “com o freio-de-mão puxado”, justamente pelo receio da eventual sujeição a obrigações jurídicas não planejadas, por assim dizer, como seria o caso da obrigação de prestar alimentos ao enteado, de forma complementar e subsidiária aos pais.
Com o máximo respeito e acatamento a quem defende tal entendimento, permitimo-nos, pelo dever de pensar o Direito, discordar. Como referido alhures, dos atos-fatos jurídicos exsurgem direitos e obrigações, independentemente da vontade dos sujeitos da relação: de uma gravidez inusitada, nasce o “poder familiar” – ou a função parental, como preferimos; de um namoro despretensioso, de repente, sem que se possa perceber, nasce uma união estável e suas decorrências jurídicas (mesmo que se acreditasse estar em um simples namoro, sem efeitos patrimoniais); do convívio em sociedade e do cometimento involuntário de ato ilícito, nasce a responsabilidade civil; e assim por diante.
Não há como ser pai/mãe e livrar-se, por ato jurídico qualquer de iniciativa própria, da função parental; não há como conduzir veículo automotor e não reparar prejuízos causados a terceiros na sua utilização (por ação, omissão, intenção ou mesmo culpa); não há como matar alguém, ainda que sem intenção, e não responder criminalmente pelo fato. Dos atos-fatos jurídicos nascem direitos e obrigações, sendo que do estabelecimento de vínculo afetivo não haveria porque ser diferente.
Não se trata de penalizar o bom e afetuoso padrasto, ou, contrario sensu, de incentivar o mau padrasto a sê-lo, senão que, meramente, de reconhecer o padrastio como um ato-fato jurídico, do qual, observadas as peculiaridades do caso concreto, podem sim derivar direitos e obrigações que ultrapassem aqueles(as) originalmente previstos.
4 CONCLUSÃO
Alicerçados na análise sistemática dos institutos jurídicos da solidariedade familiar, do parentesco por afinidade e da função parental (“poder familiar”), bem como das normas jurídicas (constitucionais e infraconstitu-cionais) aplicáveis à espécie, ainda que, eventualmente, de forma indireta, atingimos a convicção de que pode sim recair obrigação alimentar sobre o padrasto/madrasta, de forma complementar e subsidiária aos obrigados principais, os pais, tal como ocorre com os avós, e observadas as circunstâncias do caso concreto – não sendo, portanto, situação que possa ser de plano descartada pelo julgador, pela mera inexistência de vínculo sanguíneo ou de parentalidade socioafetiva declarada.
Entendimento em sentido contrário, a nosso sentir, como já assinalado alhures, incorreria no equívoco de atribuir maior importância à vinculação biológica, relegando o elo afetivo a um segundo plano, no que diz respeito aos seus direitos e deveres. E este escalonamento já não encontra mais nenhum abrigo na doutrina e na jurisprudência familiaristas.
Outro fator a corroborar nossa compreensão sobre o tema: o desempenho efetivo das atribuições parentais pelo padrasto na constância do relacionamento afetivo – funções atinentes à criação da prole do seu consorte, educação, instrução e mesmo sustento direto. Contrariamente aos avós, que, de regra, não têm esta vinculação direta com o dia a dia e sustento dos netos e, ainda assim, poderão ser condenados a lhes prestar alimentos em determinadas circunstâncias (sobre o que já não há mais nenhuma resistência ou controvérsia jurisprudencial ou mesmo doutrinária), o padrasto ainda é majoritariamente visto como imune a tal responsabilização alimentar. A nosso ver, não faz sentido sob o prisma jurídico e à luz das regras que estabelecem a obrigação de alcançar alimentos.
Ainda, não se sustenta a tese de que a solidariedade familiar aplique-se tão somente aos parentes consanguíneos. Fosse assim, nem mesmo os cônjuges poderiam exigir alimentos um do outro.
Não olvidamos dos relevantes argumentos apresentados pela corrente doutrinária que defende a impossibilidade de tal responsabilização, integrada por José Fernando Simão, dentre outros expoentes do Direito Civil contemporâneo, no sentido de que tal possibilidade de responsabilização do padrasto pelo sustento do enteado (ainda que meramente temporário) possa incentivar um afastamento afetivo destes atores. Entretanto, como frisamos anteriormente, trata-se de consequência normal da vida em sociedade, em família, mais especificamente, e da necessária e inevitável sujeição a um ordenamento jurídico – assim como, quando saímos de casa, estamos sujeitos a assunção (mesmo involuntária) de direitos e obrigações para com terceiros.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 13 Fev. 2023.
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[1] Thiago Seiler Bittencourt é advogado, graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em 2003 e especializando em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público.
[2] Art. 1.595, caput, do Código Civil: “Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade.”
[3] Art. 226 da Constituição Federal: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(…)
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”
[4] Art. 1.595 do Código Civil: “Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade. (…) §2º Na linha reta, a afinidade não se extingue’ com a dissolução do casamento ou da união estável.
[5] Súmula 596 do STJ: “A obrigação alimentar dos avós tem natureza complementar e subsidiária, somente se configurando no caso de impossibilidade total ou parcial de seu cumprimento pelos pais.” (SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 08/11/2017, DJe 20/11/2017)